Nascido e criado em igreja evangélica,
me afastei dos cultos nos meados a adolescência, aos 16 anos. Isso foi em 1992.
Passei sair, beber e me divertir pela
noite, nos churrascos, reuniões de amigos. Em 1997, resolvi voltar pra Igreja.
O que isso tem a ver com a minha doença? Nada, mas será cenário pra uma das
circunstâncias que vivo hoje.
No ano seguinte, comecei a sentir
dores intestinais muito fortes, sangramento por dias e dias. Os que me
cercavam, todos se achando um pouco médicos, davam suas opiniões e diagnosticavam
o que eu tinha. Sugestões para tratamento? Até uma mistura de água, açúcar,
suco de limão e vinagre me deram. Até que procurei o médico. Eu não tinha plano
de saúde. O primeiro “diagnóstico” foi giardíase. Destaca-se entre aspas a
palavra porque o médico simplesmente olhou pra minha cara e receitou o remédio.
Dias depois, nada resolveu e procurei um hospital público, o Rocha Faria.
Relatei o quadro e o médico simplesmente emitiu uma receita para o mesmo
problema: giárdia. Isso, sem nenhum exame, nem mesmo o clínico. Tomei remédio
por mais uns dias, mas não pude deixar de procurar outra coisa. Até que um tio
meu tinha algum conhecido no Hospital da Lagoa. Com muita insistência, consegui
ser atendido, fazer exames, e ser internado. Alguém que sangra por dias e dias
não pode mesmo estar bem. Fiquei internado por 11 dias lá. Nesse tempo, ficava
desesperado porque ia ao banheiro muitas vezes por dia, sempre com muita dor e
sangramento. Ali, fiz meu primeiro exame traumático: a retossigmoidoscopia, que
consiste em insistir um tubo de metal em lugar nada confortável e em posição
altamente constrangedora. Nesse dia, não entendi como é que existe o tal
passivo... Sem conhecer ainda direito as consequências da doença no meu corpo,
resolvi subir seis andares do hospital de escada. Achei que fosse morrer no
leito do hospital, pois me faltava ar e as pernas pareciam que tinham sumido.
Precisei fazer outro exame depois
que saí de lá: a colonoscopia. Fiz no Miguel Couto, pois na Lagoa não havia
aparelho. Eu não me lembro de nada, mas meus acompanhantes disseram que eu
gritava desesperadamente como se fosse morrer. Eu estava dopado. O exame
consiste em enfiar uma mangueira no mesmo local constrangedor da
retossigmoidoscopia, só que, sob efeitos de remédios, nada senti dessa vez.
Passados os dias e feitos esse um
exame laboratorial, veio o diagnóstico de retocolite ulcerativa, nomezinho
estranho na época. Naqueles dias, emagreci oito quilos, bastante pra quem
pesava apenas 59, ou seja, cheguei aos 51, mais de 20Kg menos do que tenho
hoje. Conheci a prednisona, corticoide poderoso no combate à crise de
retocolite, mas cruel em alguns efeitos. Nessa primeira vez até que não foram
tão severos, pois eu tomava apenas 40mg por dia, ao mesmo tempo que tomava 4g
de sulfasalazina. Recuperei-me da crise, voltei lá, mas não fui nada esclarecido
sobre o que eu tinha. Os remédios eram caríssimos, pois na época não havia
genéricos. Uma caixa de Meticorten durava cinco dias e a de Azulfin, nove. Pra se
ter uma ideia, os valores de hoje estão em torno de R$18 e R$68,
respectivamente, ou seja, eu gastaria hoje R$326 por mês. Eu entendi que era
uma doença de gente rica.
Sem esclarecimentos, com preços
assim e passando a dor e o sangramento, tudo que eu mais queria, achei que
estava livre da retocolite, achei que tinha cura. Que nada. Cinco anos depois,
no meio do trabalho, tive uma crise forte. Era o pesadelo voltando e eu sabia
disso a partir daquele momento. Entrei na emergência mas fui liberado. Procurei
outro hospital e lá me internaram, ou melhor, chamaram uma ambulância para o
hospital do convênio. Fiquei lá por infindáveis 25 dias. Conheci o que era
estar com muitos equipos pendurados. Antibióticos, soro, medicação pra dor, pro
estômago, pra enjoo... Foram os piores dias até então. Eu deixei quebrar dois
termômetros por ter esquecido que estava com eles no banheiro. As dores eram
tão fortes que eu via literalmente tudo preto e não desmaiava sabe-se lá por
que... Era agoniante sentir tantas dores por tantas vezes e ter que ir ao
banheiro em todas as vezes com aquilo tudo pendurado em mim. Pior: a enfermaria
era pra três pessoas e imagine na hora que eu precisava usar o banheiro, sempre
urgente, tendo alguém lá... foram exatos
22 dias sem nenhuma melhora, até que, enfim, a medicação começou a fazer
efeito. A exemplo da primeira crise, eu fiquei pele e osso, bem pior que da
outra vez.
Nessa internação, conheci a dieta
constipante, ou seja, isenta de leite e derivados, toda e qualquer gordura e
condimentos. Eu aguentei bem os primeiros dias, mas ameacei a nutricionista
dizendo que pararia de comer se a tal dieta continuasse, afinal, eu não
conseguia mais comer mesmo. Ela flexibilizou e devorei um delicioso prato com
arroz, feijão, carne picadinha e vagem. Nem lembro se na época eu comia vagem,
mas sei que comi tudo. Saí do hospital e fui buscar ajuda de verdade,
tratamento sério pois aquilo quase havia me matado. De verdade! Meses depois,
meu amigo e colega de setor disse que o médico da empresa buscou saber informações
minhas e disse a ele: você acredita em alguma religião? Pois comece a rezar
porque seu amigo não está respondendo aos medicamentos.
Através de uma amiga da igreja,
conheci o Dr. Antônio Carlos Moares. Na época, com 17 anos de especialização só
em retocolite e doença de Crohn, a prima má da retocolite. Além disso, era
diretor médico de um grande laboratório e um dos diretores do Copa D’or. Enfim,
alguém em quem eu poderia confiar. Levei a ele os exames todos, contei o histórico.
Eu ainda estava saindo da crise. Foi uma longa consulta, de muitos minutos,
muita conversa e, principalmente, muito, aliás, todo esclarecimento possível.
Entendi a origem da doença, que predominava em raça branca e em descendentes de
judeus. É uma doença hereditária, mas não de transmissão direta, ou seja, meus
pais não tiveram, nem meus avós. É possível que algum ascendente acima disso
tenha tido. Aprendi que a retocolite não tem cura, mas é tratável. As palavras
dele foram: “você vai morrer com a retocolite, mas não dela.” E prosseguiu: “Não
me lembro de algum paciente que tenha tido complicações ou muito menos morrido
por causa da retocolite.” A causa da doença não tinha sido descoberta ainda,
mas sabia-se apenas que estava ligada a fatores emocionais, ou seja, a causa
era sempre externa.
Tratava-se de um médico
conceituado. Passava boa parte do ano no exterior em congressos, ministrando alguns,
inclusive. Apesar de todo esse conceito, sempre foi extremamente humano na hora
de lidar comigo nas consultas. Era realmente um médico com vocação para tal.
Anos depois, descobri, pela TV, que ele havia atestado o óbito da mãe de
Roberto Carlos, ou seja, ele continuava com seu sucesso profissional.
Entre tantos esclarecimentos, um
que foi a minha grande alegria. Claro que todos os amigos tinham lá suas razões
para eu ter aquilo e insistiam em me privar de muitas coisas, sobretudo no que
diz respeito à comida. Era meio óbvio, pois o problema era intestinal e algo
causaria aquilo ali. O Dr. Antônio Carlos desmitificou a questão alimentar
dizendo que, e exceção de condimentos fortes, que eu deveria evitar, e não me
privar de vez, eu não tinha nenhuma restrição alimentar. Fez apenas uma
ressalva: na crise, eu deveria evitar os derivados de leite por causa da
lactose. Não por uma questão de agravamento da doença, mas por conforto, pois a
lactose me faria ir mais vezes ao banheiro, portanto, eu sentiria mais dor,
mais vezes e por mais tempo. Eu já tinha ouvido isso de outra médica antes de
me internar pela segunda vez, mas não dei lá muito crédito. Fui descobrindo que
a alimentação restrita acabava por piorar o meu quadro em vez de melhorar, pois
como se trata de uma doença ligada ao emocional, a restrição alimentar me
deixava mal, pois nada pior que você não poder comer o que gosta.
O Dr. Antônio Carlos me
apresentou outra medicação, mais atual e apropriada para a doença: a
mesalazina. O que era uma doença de rico passou a ser doença de rico e famoso
porque a caixa pra 10 dias custava mais de R$100. Isso há 10 anos... Os
genéricos já existiam, mas não para esse medicamento. Comprei por alguns meses,
quando começaram as crises financeiras. Depois, consegui receber pelo Governo
do Estado, mas vivia em falta. Mais um detalhe: apesar de eu trabalhar, o Dr.
Antônio não estava nos conveniados, ou seja, eu desembolsava R$120 na época.
Mesmo assim, precisava me tratar e prossegui.
Tempos depois, continuando o
tratamento, o doutor fez outro esclarecimento para iniciar uma outra fase no
tratamento. A retocolite é uma doença autoimune. Em resumo, o meu organismo não
reconhece meu intestino como meu e o ataca. Então, entramos com uma medicação
mais atual e apropriada, chamada azatioprina.
Essa medicação é usada em pessoas transplantadas. Meu irmão, transplantado
de rim, usa a azatioprina. Trata-se de um remédio contra a rejeição de órgãos.
Exatamente isso! Para o meu intestino não ser rejeitado por mim e eu mesmo
parasse de atacá-lo. Claro que era mais um remédio caro, mas esse aí o meu
irmão recebia de graça e tinha sempre sobrando. Também recebi do Governo, mas
como a mesazalina, vivia em falta.
O tempo passou, a grana ficou
curta de verdade. O convênio da empresa me permitiu conhecer outro médico.
Tratava-se do Dr. Paulo Marcelo. Igualmente humano, igualmente competente. Fez
parte da equipe que tratou vice-presidente José de Alencar. Continuamos o
tratamento. Como estava tendo crises muito seguidas, a atitude seguinte seria
aumentar a dose de azatioprina, o contra rejeição. Infelizmente, causou-me uma
pancreatite medicamentosa e, nesses casos, deve-se suspender permanentemente,
ou seja, não tomaria mais o medicamento mais avançado pra doença. Agora,
preciso procurar outro médico, pois o Dr. Paulo não atende mais. Essa é mais
uma dificuldade. Não basta ser gastroenterologista, é preciso saber lidar com a
doença especificamente.
Quando comecei o tratamento com
Dr. Antônio, tive minha época mais ativista no que diz respeito à doença. Entrei
em comunidades do Orkut, troquei experiências, aprendi e ensinei, consolei e
fui consolado. Conheci gente especial, como a Patrícia Mendes, de Minas, que se
tornou minha amiga-irmã. Comecei a entender outras coisas sobre a doença dessa
forma.
Para entender o que passo,
resolvi fazer uma enquete na internet sobre a intensidade da dor da crise
então, perguntei às mulheres portadoras da doença que haviam feito parto normal
qual era a intensidade da dor da crise em comparação à dor do parto. Todas
foram categóricas em afirmar que era a mesma. Tempos depois, tive uma crise
renal e lembrei que uma amiga da família teve parto normal e cólica renal e fez
a mesma afirmação. Pude, então, associar as três dores. Imagine sentir dores de
parto por várias vezes ao dia e à noite.
A crise é isso: sentir dores fortíssimas
por 10, 15, 20 vezes ao dia e à noite. Ela debilita porque a gente não dorme à
noite. Cada vez que se vai ao banheiro são muitos minutos de dor muito forte.
Muitas vezes, a gente acaba de sair do banheiro e tem que voltar par uma nova
sessão. Não tem analgésico que dê jeito.
Também aprendi que a retocolite
não é é absoluta, ou seja, ela se manifesta de diferentes maneiras nas pessoas.
Algumas, de fato, têm problemas com alimentação, do tipo que não podem comer
certas coisas que passam mal. Tem quem beba uma cerveja e sofra as consequências
por isso e tem quem encha a cara e não sofra um tico no dia seguinte. Tem quem viva
em crise, tem quem vive com o intestino instável. Alguns não vivem sem
medicação contínua, outros só usam em época de crise. Tem quem tenha crise por
qualquer problema e tem os que raramente têm crise.
Passados 15 anos, já tive várias
crises e, se não perdi a conta, oito internações. Isso me gerou algumas consequências.
A dose inicial de corticoide para tratar a crise teve que ser elevada para 80mg
(há 15 anos eram 40mg). É um aliado poderoso no combate a crise. Entenda como crise
sangramentos por semanas. Mas o corticoide traz severas consequências ao
organismo. Já tive quase glaucoma, tive catarata medicamentosa, minha pressão
arterial chegou a 18 por 11. A respiração é dificultosa, atividades simples,
como um banho, cansam demais. O calor debilita, as cãibras são terríveis, as
pernas sentem logo o cansaço e dedos, mãos pés e pernas travam do nada. Fora
isso, tem o sintoma periférico da retocolite, que é a dor nas articulações.
A crise de retocolite é cruel.
Trabalhando na iniciativa privada, por muitas vezes precisei tirar forças de
onde não tinha pra não me licenciar tantas vezes. Acordava pra trabalhar às
4:20h, mas precisava acordar uma hora antes para ficar indo ao banheiro. Não
era suficiente para evitar coisas ruins. Quase sempre eu tinha uma crise no
meio do caminho, ou seja, tinha que segurar a dor a sangue frio, às vezes
dirigindo, às vezes em um ônibus, em pé.
Tem o lado social também. No meu
caso, a autoestima despenca porque fico inchado no rosto. Isso pode parecer
besteira no meio de tanto sofrimento sério, mas pra mim é algo a mais e não
algo pequeno que se pode comparar a todo o resto. A retocolite me fez desistir
da música, minha paixão. Não posso me comprometer mais com os palcos com tantas
restrições. As crises me prendem em casa e não posso ir a lugar algum. Tive que
largar os shows por isso também, fora que a prednisona resseca as cordas
vocais. Tem também a questão das cãibras e os dedos travares, não me permitindo
tocar direito. A demora da remissão da crise me deixa mal humorado, e a
variação de humor já é um dos efeitos colaterais da prednisona também. A doença
me fez parar a faculdade e não iniciar novos projetos. Foi na marra que me
tornei funcionário público, pois foi em meio a crise que estudei. Ela estraga
bastante a pessoa que todos estão acostumados a ver. A minha paciência vai a
zero, dependendo do caso, dou respostas grosseiras, mas me calo na maioria das
vezes. Em 15 anos de doença, são as mesmas perguntas, as mesmas recomendações,
os mesmos conselhos. A crise demora semanas e mais semanas pra acabar, mas as
pessoas me perguntam todos os dias se estou melhor. Culpa de ninguém, mas isso
me irrita e não posso controlar. Acabo por evitar as pessoas nesses dias difíceis.
As pessoas têm boa intenção,
querem sempre ajudar, se preocupam, perguntam, mas como nada sabem sobre a
doença ou mais ainda, não sabem como ela se manifesta particularmente em mim, aconselham,
dizem que tenho que fazer isso, não fazer aquilo. Todos associam minha doença
ou suas crises a algo, na maioria das vezes com o que eu como ou bebo. Mas, às
vezes, vai um pouco além.
Outro dia, uma pessoa associou
minha crise a um mau momento pessoal. Bem, isso é lógico, pois as crises vêm
com problemas emocionais mesmo. Mas ainda essa mesma pessoa disse que teria a
ver com a minha questão espiritual, que isso estava assim por eu estar longe de
Deus e tal. Eu permaneci longe de Deus por vários anos na adolescência e, meses
depois de voltar à Igreja, descobri a doença. Associar isso a estar perto de
Deus ou não é incoerente, pelo menos no meu caso. Eu não culpo Deus. Tenho retocolite
porque isso dá em gente, em ser humano. Se eu fosse um cão, talvez tivesse
sinomose ou parvovirose. Minha mãe vive orando, amigos da igreja fazem o mesmo
e pedem pela minha cura. Eu mesmo pedi muitas vezes, crendo de verdade, lógico,
pois não pediria algo a Deus sem acreditar. Mas hoje, me conformo. Usam o texto
de uma mulher com fluxo de sangue que tinha isso por anos e que foi curada por
Jesus. Eu creio nisso, faz parte da minha convicção religiosa, só quero ter o
direito de achar que Deus não quer isso pra mim. Não tenho raiva de Deus, não
me revolto com ele. Ele quis assim e ponto final. Minhas convicções religiosas
não me “permitem” achar que todo tipo de reza ou pedido de outras religiões são
bem-vindos, que somam. Não, eu acredito apenas na minha e pronto. Agradeço
muito quando torcem por mim, mas acho que nada soma nessas horas. Eu não sofro menos
por receber orações. Penso que, no meu caso, elas não vão me curar. De outras
religiões porque não creio nelas e da minha por achar que Deus não quer isso
pra minha vida.
Saindo da religião, não existe
nenhuma fórmula mágica, nada tão oculto que não tenha sido descoberto para a
doença. Já tomei os remédios mais avançados, e os exames são todos os mais
adequados. Perguntam de cirurgia, se ela é possível. É sim, mas é um caso muito
extremo. O tratamento usual é o que faço. Se um dia ele não der resultado,
existe uma outra etapa, com um medicamento chamado Remicade, que é aplicado em
hospital com semi-internação. A cirurgia que tanto perguntam é a retirada de
parte do intestino e ficar com uma bolsa pendurada no corpo no lugar dele, que
deve ser esvaziada algumas vezes por dia. Nada bom, né? Não é uma alternativa
que se pense, não? Eu não penso nela. Prefiro tomar esses remédios e aturar
seus efeitos.
Sobre a comida, bem, como eu
disse, não tenho restrições alimentares. Bebida alcoólica? Eu não bebia até
dois anos atrás, aliás, bebia até meses antes de ter crise, ou seja, bebi por
cinco anos sem ter nada manifestado da doença. Parei de beber, voltei pra
igreja (entende-se: passei a ter uma vida regrada novamente) e então veio a
doença. Fiquei 13 anos sem beber e depois que voltei, não senti nenhuma
diferença. Eu como de tudo, bem, tudo que gosto. Não tenho alteração nenhuma
quando como um torresmo, uma lasanha, carne de porco, de boi, de frango, peixe,
ovo, leite... nada altera meu intestino diferente do que poderia alterar o de qualquer
outra pessoa. Aliás, algo sim. Como eu disse, a retocolite se manifesta de
diferentes formas nas pessoas. Eu evito os condimentos fortes ou coisas que tem
essa característica. Como presuntos e embutidos, hambúrguer, mas não posso
comer mortadela. Quando como, tenho consequências no dias seguinte, mas não é
crise da doença. É uma reação normal que dura o tempo do dias seguinte e
pronto. Não passo mal, não tenho sangramentos, não fico dias indo ao banheiro
com diarreia. Nada disso. Mas eu evito a mortadela. Quando muito uma fatia com
pão e só, mas raramente. Comprar eu não compro. Como quando estou na casa de alguém
e só. Se eu comer sempre vou ter crise? Não sei, é condimentado e essa foi a única
recomendação que tive do médico. Então, sigo o que ele disse. Mas como eu falei, as pessoas fazem uma associação
direta e lógica. O problema é no intestino, portanto, está ligado à alimentação
como uma gastrite. O que as pessoas têm que entender é que a alimentação não tem
nenhuma influência na minha doença, nem na causa e nem na consequência. Às
vezes, estou em crise e faço uma restrição de lactose, mas tem dia que não
suporto e resolvo tomar um café com leite e o mais interessante é que esse café
com leite, em vez de trazer consequências ruins, traz boas, pois ao mesmo tempo
que estou ingerindo lactose, estou me satisfazendo, ou seja, estou mais feliz
naquele momento porque a restrição alimentar da crise também tem um efeito
dominó. Se ela se prolonga por muito tempo, ela acaba comigo. Não adianta usar
do artifício “é pro seu bem”, que não resolve. Se na crise eu tiver que comer
um empadão, vou comer. Não se trata de ser maluco, de fazer loucuras ou ser
inconsequente. São nada menos que 15 anos lidando com isso, sabendo os limites
do corpo, entendendo o que posso ou não fazer. Estou saindo de uma crise e
ontem tive vontade de comer linguiça fritinha, bem torradinha no macarrão que
tinha feito. Comi. Piorei no dia seguinte? Não. O estômago reclamou? Não.
Voltei a ter sangramentos? Não. Eu arrisquei ter? Talvez, mas até então nada
aconteceu e não falo dessa vez, falo de fazer isso por esses anos todos. Essa é
a razão pela qual converso com a nutricionista sempre que me internam. Claro
que elas nunca me ouvem, pois seguem uma cartilha que diz que diarreia pede
dieta constipante. O argumento é que se eu não fizer, será pior. Eu não vejo
isso na prática e mesmo que sentisse isso, preferiria sofrer um pouco mais
comendo coisas boas do que sofrer duplamente com a crise e com a dieta. Não é o
caso. Sofrer não é bom e eu não faria nada comigo que me levasse além do
limite, porque a crise, pra mim, por enquanto, é o limite.
Então, com todo respeito às
pessoas que tentam me ajudar, que contam suas histórias e experiências, acho que
cada um tem a sua medida, sabe do seu sofrimento. Mais um detalhe. São tantos
anos sofrendo com isso. Será que eu não trocaria tudo isso, quase morrer por
algumas vezes, sangrar por semanas, perder autoestima e outras coisas mais por
uma dieta? Se os médicos dissessem que eu teria que comer isso e aquilo e
deixar de comer aquilo outro pra ficar bom, eu faria sorrindo. Pena que não é o
caso, ou não. Sabe-se lá se eu suportaria uma vida de privações. A amiga que me
indicou o Dr. Antônio Carlos Moraes tem síndrome do colo irritável, muito menos
severa que a retocolite, mas que proíbe a lactose. Já pensou?
Eu poderia resumir a doença
assim. É hereditária, não tem cura, é tratável. Não tem restrição alimentar,
está diretamente ao emocional, todas as crises são desencadeadas por algum
problema da vida. Não existe fórmula mágica, nem remédio ainda não descoberto
em outro país. Eu não estou sozinho nessa. Tem comunidades de gente que se
engaja de saber de alternativas, remédios novos. Acreditem, se houvesse algo
novo e inovador, eu saberia. Essa é a realidade de retocolite na minha vida,
uma doença que varia de pessoa pra pessoa. Uma doença que é muito difícil pra
mim, que me traz restrições, que acabou com minhas veias. Não sei já me
conformei de vez, mas relaxo.
Eu desejo muito o carinho das
pessoas, embora todo esforço que façam pra me entenderem não seja suficiente.
Apenas alguns amigos mais restritos entendem do que falo. É um problema severo
que não tem graça, não admite piadas, não deixa margem pra risos. Não é uma
caganeira, não tem graça dizer que é pra tomar chá de rolha ou comer farofa. Não
é bom ficar em casa preso, sentir dor, ficar inchado, abandonar sonhos. É ruim
e realmente não tem graça. Tive crises tão severas que pedi pra morrer várias
vezes, pedi a Deus que me levasse. O desespero me fazia esmurrar minha própria barriga.
Isso mesmo, dava socos em mim mesmo por não saber mais o que fazer. Alguém
ainda acha que pra um quadro tão grave um suco de goiaba vai resolver?
A crise deprime, mas isso passa.
Depois a gente respira e volta tudo ao normal. Infelizmente, alguns mais próximos
me poupam dos problemas quando estou mal, mas se esquecem de fazer o mesmo
quando estou bem. As pessoas me trazem problemas desnecessários, descarregam em
mim e podem gerar crises. Depois, não adianta ter cuidado comigo porque depois
que se arromba o cadeado tanto faz.
Procuro ter uma vida mais
tranquila, uma cabeça boa, mas nem
sempre isso evita a crise. Já tive crise estando bem da cabeça, mas o intestino
absorve, não tem jeito. Não está no meu controle, quase nuca está.
Bem, meu objetivo era trazer a
realidade da minha doença pras pessoas que conheço. Espero que tenha
conseguido.