Procurador de coisas

sábado, 21 de junho de 2014

Ser ou não ser?

Já ouvi algumas vezes: você não é pai, não sabe como é isso. Ouvi isso de quem fazia todas as vontades de uma criança. A vontade de fazer tudo que quer, tudo que uma criança quer, sem se importar com as consequências pra própria criança supera tudo de tange a coerência. O comentário, em si, já é incoerente, fora a atitude. O que nos resta questionar nessa vida diante de tamanho sábio argumento?

Pensei em comparar isso com alguns exemplos. Não é preciso forçar muito a mente. Recentemente, vimos protestos, nos quais se incluiu a questão de alguns centavos na passagem. Segundo a brilhante teoria do "você não é pai", poderiam dizer: você é dono de empresa de ônibus? Sabe quanto custa manter uma frota? Sabe dos impostos, dos custos, encargos trabalhistas? Isso vale para qualquer tipo de greve também. Dizer que é um erro haver uma greve de transportes causando colapso em São Paulo, como aconteceu há alguns dias, é burrice. Alguém aí é maquinista, motorista, cobrador, segurança de plataforma? Estudaram a fundo a evolução da defasagem salarial que sofreram nos últimos anos?

Quem sabe podemos incluir aí, também, os problemas comportamentais. O cara vai lá e rouba o seu relógio. Mas espera aí. Você foi criado em uma favela, num ambiente hostil, apenas pela sua mãe porque seu pai morreu no tráfico e sua avó morreu na fila do hospital? Aliás, ninguém é médico pra dizer que ele negou atendimento porque a prefeitura local não paga o seu salário há três meses e ele vinha trabalhando de graça durante esse tempo.

Quem pode reclamar da greve dos bancos? Seu boleto venceu e você vai pagar juros por isso? Lamento. Você não é bancário, portanto, não sabe que o bancário marca ponto e trabalha várias horas de graça por mês, que ouve desaforo o dia todo sem poder responder, que as cadeiras são inadequadas, que existe assédio por metas, mesmo no serviço público. Você não sabe que o banco não paga altos salários por ser banco e lucrar bilhões por ano. 

Dezenas de exemplos poderia ser citados, mas o que mais poderia derrubar essa estúpida teoria é que os seres humanos possuem uma coisa chamada individualidade. Temos nossas particularidades, portanto, fosse esse o argumento, ele já nasceria derrubado, pois se alguém é pai, mãe, avô ou avó tanto quanto o outro, estaria ele apto a, então, criticar uma atitude alheia. Esse argumento é tão burro que eu me atrevo a dizer que essa pessoa diria a mesma coisa pra outro ente de mesmo grau. Você não é pai, não pode falar. Pois é... Eu sou o sexto de sete filhos, o quinto homem, com pai aposentado e mãe dona de casa. Sou cinco anos mais velho que minha irmã e cinco anos mais novo que meu irmão. Minha família é protestante, sou baixo, sou músico, me faltam dois dentes, tenho entradas, tenho uma doença complicada. A não ser que apareça alguém com tudo isso aí, pelo menos, não poderá me criticar em nada. Minha criação, os ambientes que convivi, o meu trabalho, onde moro, por onde dirijo... isso tudo molda meus momentos para cada atitude.

A argumentação de ser para poder criticar me deixa livre para responder mal a um cliente porque o infeliz não sabe a semana de cão que eu tive.

Eu não preciso ser pai, até porque, olha que coisa, eu não posso ser mãe pra ser crítico a um pai. Se assim fosse, eu não poderia criticar meu próprio pai em nada até ser pai, mas aí ele se tornaria avô e eu teria que ficar calado de novo. Eu preciso apenas de coerência. Será mesmo que é preciso ser pai pra dizer a uma pessoa que é errado que uma criança consiga algo com pirraça, com grito, com manha? Eu já me surpreendi com um móvel destruído porque a pessoa disse que fazia qualquer negócio pra aquela criança ficar quieta. Já vi criança chorar porque alguém trouxe da rua um refrigerante que ela não queria e a pessoa voltar, na chuva, pra comprar. Eu preciso ser pai? Já vi criança de quatro anos rebolar sensualmente como uma mulher e todos aplaudirem. 

Eu não sou moralista. Tenho muitos, mas muitos defeitos mesmo. Mas é loucura achar que você não tem direito de criticar por também ter defeitos. E acaso alguém é perfeito? A foto do post é simbólica. Coisas assim acontecem porque mergulhamos nossas crianças no mundo liberal dos adultos. Mimamos nossas crianças tornando-as antipáticas. Conheço crianças mimadas sem ser pai. Pois é, acho que é exatamente não sendo pai que se vê certas coisas. Crianças mimadas são chatas, antipáticas. Nem adultos, nem outras crianças querem por perto e, fazendo tudo que querem, serão cada vez mais precoces nas atitudes inconsequentes e coisas como as da foto acontecerão mais e mais vezes.